quinta-feira, 9 de abril de 2009

O Elogio da Preguiça

Demasiado preguiçosa para escrever, mesmo que seja para ir aos álbuns.
O olhar espraia-se para dentro, os olhos semi-cerram-se e bocejo.

Dos álbuns falta-me o "As Vozes em Ti", do Daniel, que sob pseudónimo publicou em livro. Depois, é momento de fechar a caixa, que não se quis de Pandora.

Mas enquanto me espreguiço, plena de vontade de saltar para qualquer lado onde, com sol a bater, dormisse um pouco, penso que é hora de espalhar o Evangelho do novo pensamento e da minha nova escrita, esperando que alguém que já por aqui anda, se encha de coragem e venha aqui escrever, que encha este espaço com o seu enorme talento.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Do álbum URBANIDADES - III

" URBANIDADES

Liberta de pesos recentes, entrego-me à luz radiosa de uma Lisboa fervente de calor, encalorada ainda pelos amigos que me vieram surpreender. O fastio e o tédio, ou aquele spleen de que falava o António Nobre tinham tomado posse das minhas vontades. Nem o horror, numa noite destas, fria e tardia, me tinha acordado. O passeio que então eu fiz pela noite da cidade, saída de um autocarro quase vazio e cheio de silêncios, ali pela Praça da Figueira, vagueando à procura de pensamentos, enquanto me confrontava com os dormentes das portas e dos vãos das igrejas, fora revelador - vi aquilo que não quizera ver até então, mesmo à minha porta, pelas meias noites da vida : pessoas enroladas em cartões e jornais, com uma manta rasgada pelos pés ou a tapar a cabeça, para se não verem os rostos, garrafas vazias pelo passeio, sacos de plástico com restos de esmolas. Oprimida, arrastei-me até um metro próximo, para me levar para casa. O sono apagaria a memória. Hoje, o sol relembrou-me a vida, que se sente nos passeios e nas gentes com quem me cruzo. Às 4 da tarde, lá me meti no transporte para os correios e para os amigos, morrendo entalada em gente que abarrotava e perguntando-me que empregos, que trabalhos eles teriam para estarem cá fora àquelas horas, ouvindo as risadas e as conversas do futebol e da política, sim que isto da Câmara de Lisboa dá dichotes em todo o lado, aqueles ladrões são tudo o mesmo, só querem é sacar, só querem é tacho. Voltei à escrita, já noite, para me embalar no sorriso do encontro dos amigos, sonhando já com o dia que aí vem.
Lisboa, aos 17 de Março, a preparar outro dia"

Do àlbum: URBANIDADES - II

"URBANIDADES
As pessoas, para mim são rostos. E olhos. Olhares. Mais nada. Nada representa o que vestem, ou se ornam, ou ostentam. O olhar. Apenas o olhar. Hoje, que recebo a troca de memórias rurais em Ruralidades que me enviaram, directas à alma mais do que à escrita, sinto que os rostos e os olhos das minhas pessoas, das pessoas onde me movo e onde me vivo, são, de facto, citadinas. A cidade tem cada vez mais idosos e cada vez menos velhos - os velhos, ou as velhas, de negro ataviadas, de lenço preto a tapar cabelos e a testa, todas viúvas, todas enrugadas, partidas pelo sol e pela vida, rosário nos dedos e lábios ligeiros em ladaínhas, desapareceram da minha cidade. Mesmo os velhos e as velhas que encontro diariamente nos meus transportes, transportam-se a todo o lado, menos às velhas da Ruralidade. Ou as ciganas. As ciganas que encontro cada vez mais no metro e que mostram decotes, já pouco têm a ver com as ciganas da minha juventude. Um dia aqui falarei da Amparo, cigana/Mulher ímpar da infância das minhas interrogações. Hoje, transportei-me num eléctrico, o 25, que recolheu uma cigana, das antigas, mulher para aí com uns 5o anos, à boa maneira antiga - todinha de preto, até no olhar. Um olhar triste mas que fulminava, fulgurante, enquanto fazia perguntas e remoía remoques de desagrado. Saiu antes de mim, sempre desagradada. Levou os desagrados com ela, ali para as beiras de Santos, à procura de outro transporte. Deixou-me o olhar.
Em Lisboa, aos 21 de Março, ouvindo o eléctrico lá fora. "

Do álbum: FRAGILIDADES

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FRAGILIDADES
Cedi à tentação das lágrimas. Não, não era um episódio folhetinesco, daqueles que na minha infância lera sofregamente e de seguida, febril, vermelha de ansiedade, atirava fora, para ser devolvida ao rapaz na semana seguinte. Estas memórias são permanentes, intensas, porque representam os romances de cordel que desapareceram da minha vida. Mas não foi por eles ou algo semelhante que lágrimas me rolaram. Foi de puro choque, de grande emoção, por histórias e estórias de animais maltratados, violentamente maltratados,que há dias me contaram. A minha impotência revelou a minha enorme fragilidade. "

Do álbum : VERSATILIDADES

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VERSATILIDADES
Um Mestre antigo disse : " Aqueles que alcançaram o Zen mantêm-se sempre livres, sem desejo e independentes".
"Aquietai os pensamentos na vossa mente. É bom fazer iso exactamente no meio da agitação. Quando estiverdes a trabalhar, penetrai nas alturas e nas profundidades".
Mestre Zen Yuanwu
Em Lisboa, no Zen, em 21 Março "

Do Álbum: URBANIDADES - I

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URBANIDADES
Percorro diariamente a cidade no 27. Isto de se viver numa ponta de Lisboa e trabalhar na outra tem os seus encantos. Os fim de semana e os feriados proporcionam-me outras delícias, porque o 27 descansa e eu sou obrigada a mudar de trajecto, que varia conforme o tempo e a disposição.
Hoje a minha disposição era cinzenta e preguiçosa, enfiei-me logo no 60 para vir aterrar à porta do trabalho, sem andar a mudar de linha ou para o metropolitano, que também preenche muitas das divagações que me divertem nos percursos, a observar as gentes e os cheiros, a absorver as palavras e os gestos, muitas e muitas vezes inquietantes.
Hoje construí-me de velhos e velhas, saídos das cascas-casas com o sol magnífico que por aqui faz e um friozinho meio de rachar, porque já houve bem pior. Surpreendi-me logo na paragem de entrada, com duas velhas todas de negro, que me levaram de imediato aos hábitos da minha infância que ditavam ser obrigatório um luto carregado toda a vida, sob pena de desenvergonhice social cuscuvilhada nas vizinhas e porteiras. As duas velhotas não queriam o autocarro para nada, queriam o banco da paragem para, entre doenças e desgraças que contavam uma à outra, cheias de lástima entusiasmada, fazerem a sua reserva do sol e do calor que as iria aquecer à noite, cada poro da sua pele era um frasquinho de sol, qual botija de água quente para o corpo e para a alma. A avenida, tão larga que é, rejubilava à luz daquela hora, e a quietude sentia-se perturbada por dois ou três passantes, vagarosos, lá vai uma senhora a passear o cãozinho, e aqui na paragem as duas velhas entre as doenç as que lhes levaram os defuntos....E eu, tão distante disto tudo, a amaldiçoar os horários que nunca se cumprem e o autocarro que não chegava, mas lá chegou, cheio...de outros velhos e velhas que hoje saíram das suas cascas-casas para vir abarrotar o transporte, em molhinhos de gente que pouco sai e pouco passeia e que anda no autocarro ao domingo para ir ao cemitério. Pensei eu, que o 60 vai para o cemitério da Ajuda.
Encasulada no meu assento, de olhos fechados para dormitar fingidamente, antes que me pedissem o lugar, fui rodeada de vozes altas e risonhas, de conversas mais gritadas que faladas, que cada um ia entalado no meio de muitos, com telemóveis de filhos a perguntarem pela mãe, com projectos de passeios em amizades de grupo que, generosamente ali compartilharam bilhetes, que uns tinham e outros não...E, ai que tenho de me sentar, ai a minha perna não me larga! Ó dona Deolinda, atão nã tá milhor? Tome lá um bilhetinho dos meus, ó senhora, que eu tenho a mais, tenho é de me sentar para abrir a mala....Atão mas isto vai pela Baixa? Ah, é ao domingo, porque eu não tenho passado por aqui, olhando a Praça da Figueira ou o Largo da Câmara.
Deixando-os a falar e contentes porque eu deixava um lugar para eles, saí em Santos, no meio de música que uma banda debitava, não percebi bem o que era porque o compositor estava ser livremente distorcido pelos metais e pelos claxons dos carros, que queriam andar e não os deixavam, subi as minhas escadas e abri a varanda, de par em par, para deixar entrar um sol meio cristalino que não me aqueceu.
Em Lisboa, 6 Março, já à espera do dia 7. "


Já não sei ao certo se este álbum e outros que aqui trarei, são todos de 2004 ou já de 2005. Não interessa. É por aí.....

O sitio também é dos Amigos - II

Não foi só a VARANDA.
AS VOZES EM MIM também me deram duas boas novas, ambas inesperadas. Uma (não sei se a primeira ou se segunda, e isto por mera cronologia) segue aí:

" De: Mia Couto <.....@......>

Data: Quarta-Feira, 30 de Junho de 2004, 8:16

Assunto: [ignorancia] Re: AS VOZES EM MIM

Cara Fernanda
È manhã clara em Maputo (as manhãs de Junho são as mais bonitas neste lugar). Estreei o dia lendo os seus versos. Não posso deixar de lhe agradecer ter tornado o dia mais claro, mais cheio de vozes e presságios. O seu poema tocou-me muito, isto eu lhe queria dizer.
Mia Couto "

Andei dias feliz. Imagina-se.....Mas nada mudou em mim. Continuei a ser a pessoa que já era. Mas a felicidade que este abraço me deu, renova-se a cada leitura.